“Os nossos mundos interiores são as paisagens sociais de amanhã, do futuro.
Não podemos deixar o medo preencher todo o espaço. Fazemos sociedade por isso, para enfrentar o medo.
Sim a outrem.
Sim ao que não podemos entender.
Temos de transformar isto. Parar o caminho do ressentimento.
É o momento para sarar o outro.
A continuação já se está a construir no interior dos nossos corpos.
Lutar pela delicadeza.
Olhos nos olhos.
Sublimar as nossas vidas.
Parar o medo.”
Estas palavras são uma paráfrase aproximada de algumas partes do manifesto final que leu uma atriz, após toda a energia e a emoção acumulada no espetacular e também especular (de speculum, specularis) QUI SOM? da companhia franco-catalã Baro d’Evel, uma criação de Camille Decourtye e Blaï Mateu Trias.
Um espetáculo que se abre com a pergunta formulada no seu próprio título: quem somos? – na primeira pessoa do plural – afastada do individualismo egocêntrico do quem sou? – na primeira pessoa do singular – para dar a essa questão um alcance social.
QUI SOM?, apesar do manifesto final, mais afirmativo do que o espetáculo, é uma peça aberta, de um existencialismo onírico e fantástico, gerado pelas ações coreográficas, musicais, com as vasilhas de cerâmica mole, e até com a cenografia que enche o palco, similar a um mar dos argaços ou a uma grande manta de algas. O existencialismo a que me refiro poderia considerar-se inerente à própria questão que o título indica: quem somos? Aliás, também surge pelos contrastes em muitos quadros ou cenas, por exemplo, o humor, não isento de inquietação, quando as pessoas que estão juntas, a olhar para nós, começam a escorregar e a cair acima de um chão, de repente, muito instável, ficando com os vestidos pretos sujos daquele líquido, entre branco e cinzento, que está sob os seus pés.
O humor e o desassossego – produzidos pela exposição de vasilhas brancas, todas iguais, situadas sobre duas filas de peanhas pretas nos laterais do palco – quando as atrizes e atores metem as suas cabeças dentro daquelas vasilhas, e se transformam numa espécie de marionetes. A cerâmica está mole e permite brincar com a forma cilíndrica das vasilhas, deformando-a. Então convertem-se em máscaras singularizadas, abrindo buracos para os olhos, a boca, as orelhas, e usando pós vermelhos para dar-lhes uma certa perspetiva menos plana. Continuam, contudo, a parecer as máscaras de um carnaval ancestral, evocando uma comunidade arcaica. Resulta inevitável, para quem o tenha visto, lembrar-se do trabalho de Olivier de Sagazan, com argila, barro, água e cores.
A comicidade e a confusão que pode produzir o sketch em que as mulheres tentam pôr os sapatos de salto alto, com aquelas contorções e a colaboração que se estabelece entre elas para se ajudarem, embora acabe com um simulacro de acidente.
O humor existencial, beckettiano e circense, da dupla de homens barbudos com fisionomia semelhante – após as cenas individuais a carregar um saco com uma pessoa dentro e, depois, com detritos plásticos – quando olham um para o outro, como ao espelho, se perguntam quem som, e tentam aproximar-se um do outro e até se tocarem. Mas aquilo acaba por não funcionar, porque embora pareça que andam a procurar alguém igual, vão descobrir que não existe ninguém igual. Uma cena conectada com a da menina que, de repente, aparece no palco para perguntar a um dos homens barbudos que leva um saco às costas – o bailarino e coreógrafo andaluz Guillermo Weickert, que conheço porque foi um dos meus professores de dança – se é ele, ou, tal qual o diz a menina: “És tu?”. Ele responde o obvio: “Sim, sou eu”. Mas a menina insiste com a pergunta, até que acrescenta: “És tu o Pai Natal?”, o qual obriga a Guillermo a ter de responder que não, embora elimine a ilusão da menina, que se abraça a ele ansiando que seja quem ela quer que seja, ou quem ela espera que ele seja. Ser ou não ser, essa é a questão, tal qual o príncipe Hamlet. Mas, se calhar, estamos numa época para deixarmos de “ser” príncipes e princesas e começar a ir além do “ser ou não ser”.
Encontramos, portanto, várias cenas muito simples, e tão abertas como poemas cénicos em que “o ser” é problematizado em relação a outrem. Aparece o drama do ser individual, com todas as dúvidas inerentes à construção da identidade, sem a qual a pessoa não seria ninguém para si própria nem para a sociedade em que é alguém. Aparece o drama da expetativa marcante do ser, ativada pelos outros seres que nos rodeiam. E aparece a dialética da necessidade de sermos alguém, face a liberdade de não sermos ninguém ou, noutras palavras, de não ter que responder às expetativas identitárias do que se espera que sejamos. Face a tudo isto, está o cãozinho que corre pelo palco nalgumas cenas. Ele não parece ter todas estas inquietações, e também não consome nem aniquila o Planeta Terra – representado, se quisermos, diretamente, através do próprio material da argila e do barro com que atuam, e também na representação visual do mar de sargaços e algas – deitando detritos de plástico.
Acho que foi Jaume Melendres, nas suas aulas de Dramaturgia no Institut del Teatre de Barcelona, que nos dizia que no palco, dentro da esfera do teatro dramático ilusionista – os realismos – nunca se podia utilizar animais, bebés, pessoas bêbedas ou loucos, porque não iam seguir as regras da lógica causal, para fazer da ação cénica artificial uma ilusão ou ficção verosímil, de maneira realista. Porque os animais, os bebés, as pessoas bêbedas ou os loucos não fingem nem mentem, são muito reais, ou se se prefere, embora não seja o mesmo, são muito verdadeiros. Assim sendo, vai ser nisso que, primeiro, Richard Schechner, encenador americano e fundador dos Performance Studies, e depois Hans-Thies Lehmann, professor alemão, chamaram teatro pós-dramático, onde a verdade dos corpos das pessoas e das suas presenças, em pé de igualdade com os corpos doutras entidades, como por exemplo os objetos, as luzes, os sons e até os animais, os minerais ou os vegetais, configuram a paisagem viva da peça teatral que nos interpela. QUI SOM? é um excelente exemplo disto.
Uma peça paisagem em que o teatro é um ritual ou cerimónia – há quem diga que assim foi como nasceu o teatro – para esconjurar os medos, para acordar a consciência individual e, sobretudo, social, no que diz respeito à nossa responsabilidade para estar no presente a construir a respetiva continuação: o futuro.
Fá-lo como um poema aberto e polissémico, em que o humor circense e a dança grupal, de uma plasticidade que nos pode lembrar à já histórica May B de Maguy Marin, com todos os ecos de Beckett e até de Tadeusz Kantor, se conjugam com um existencialismo efervescente, perturbador, alucinante, que nos acorda para a ação.
Uma paisagem cénica e rítmica em que todo o palco acaba inundado de detritos de plástico, vomitados por uma parede marítima de algas e sargaços, animados pelo elenco. Assim sendo, toda a superfície visual do palco é uma massa informe que evoca o mar, do qual saíram os primeiros seres vivos, a parir garrafas e lixos de plástico, numa cena apocalíptica de uma terrível realidade, pois todas as pessoas sabem que já há territórios inteiros do Planeta convertidos em montes de lixo, produzidos pelo chamado primeiro mundo.
As brincadeiras, o humor, o alucinante trabalho físico, vocal, musical, “dancístico”, acrobático e teatral do elenco, junto do cãozinho e da criança, dos objetos de argila e de cerâmica, dos detritos de plástico e da enorme cenografia de evocação marítima, produzem uma beleza impressionante.
Baro d’Evel, com QUI SOM?, interpela-nos oferecendo-nos beleza, diversão e festa. Fá-lo tendo muito presente a dúvida e a incerteza, mas tendo também muita clareza sobre o rol da arte para nos unir, para acordar a nossa consciência sem nos dar lições, e para nos convidar a agir por um presente e um futuro dos quais temos a responsabilidade.
(Os meus agradecimentos para Maria José Albarran Alves de Carvalho pela revisão linguística deste artigo.)