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Bernardo Santareno X2

Prisões e pressões

'BERNARDO SANTARENO x2' de Assédio Teatro.
'BERNARDO SANTARENO x2' de Assédio Teatro.

Na minha curiosidade, interesse e admiração pelo teatro português, peguei, há uns quantos anos, na obra de Bernardo Santareno (1924-1980). A primeira peça que li foi O Lugre (1959) e fiquei impressionado, não só pelo exotismo e riqueza da linguagem e da vida do mar num barco bacalhoeiro, mas também, e sobretudo, pelo facto de refletir, de uma maneira pormenorizada e até lírica, a crueldade, a violência, a ternura e a necessidade de afeto do ser humano na sua luta pela existência. Depois li O Bailarino e a Excomungada (1957) e pude observar uma subtil viragem dessa espécie de naturalismo ou realismo dramático de reminiscências trágicas para um tipo de simbolismo. Também li A Promessa (1957) e O Crime da Aldeia Velha (1959), todas da sua primeira etapa. Adoro, em geral, essa capacidade para oferecer situações dramáticas locais, muito concretas, relativamente ao lugar e ao tempo – à época –, de maneira realista, gerando um efeito imersivo e, ao mesmo tempo, para inserir uma dimensão quase cósmica, ligada a forças supra-humanas, se calhar forças telúricas, a tocar nos terrenos, por vezes, do exotérico.

Pela sua dramaturgia, deduzo que Santareno conhecia bem as profundezas das pessoas, das suas ações e das suas relações. Aliás, trata-se de um dramaturgo que era médico especializado em psiquiatria. Os médicos, após o exemplo de Antón Chékhov (1860-1904), colega de Stanislavski, e, a seguir, o exemplo de Bernardo Santareno, pelos vistos, dão bons dramaturgos.

Porém, nunca tive oportunidade de encontrar a obra deste último nos palcos, até que a companhia Assédio Teatro e o encenador João Cardoso no-la ofereceram no díptico formado por A Promessa (1957) e O Pecado de João Agonia (1961), em coprodução com o Teatro Nacional São João do Porto.

No dia da Imaculada Conceção – oito de dezembro de 2023, sexta-feira – e no dia nove, sábado, o Teatro Diogo Bernardes (TDB) de Ponte de Lima fez uma curiosa coincidência com o dia santo da Virgem, ao programar duas peças de Santareno em que, de uma maneira assombrosa, se põe em causa a ordem religiosa e se expõem os perigos das crenças, enfrentadas aos desejos afetivo-sexuais necessários para a realização do ser humano.

O Teatro Diogo Bernardes, com a sua disposição plateia–palco à italiana e com uma lotação proporcionada, no que diz respeito à proximidade adequada para usufruir dos pormenores da interpretação de atrizes e atores, é, do meu ponto de vista, um dos melhores espaços para garantir a ilusão de realidade e, portanto, para o teatro dramático e para os realismos, nos seus diferentes estilos. Essa proximidade entre o palco e o público tem as medidas ideais para que se possa produzir uma imersão e até uma identificação emocional, no que diz respeito à ficção dramática. Pude comprovar isto, na prática, quando, em novembro de 2018, fui ver, ao Teatro Diogo Bernardes, Do Alto da Ponte (1955), de Arthur Miller, pelos Artistas Unidos de Lisboa, com encenação de Jorge Silva Melo, e fiquei absorvido pela história, e, em janeiro de 2019, voltei a ver o mesmo espetáculo no São Luiz Teatro Municipal de Lisboa e gostei, mas, nas últimas filas dessa grande plateia, sem a proximidade que facilita o Diogo Bernardes de Ponte de Lima, a minha receção, e também a de colegas que me acompanharam, foi mais fria.

Assim sendo, o TDB, do meu ponto de vista, é um muito bom espaço para que se possa dar a catarse trágica que bate nestes dois dramas de Santareno. E assim foi! O público ali congregado ficou preso pela ação dramática. Podia sentir-se a tensão e a emoção no ar perante a história do casal protagonista de A Promessa, formado por José e Maria do Mar, naquele contexto da aldeia marinheira de princípios do século passado. A tensão e a emoção originadas pelo constrangimento, tipo cárcere, causado pela promessa religiosa pela salvação do pai de José de um naufrágio muito provável, nos antecedentes. A tensão dramática que gera o peso da promessa, que afoga Maria do Mar numa virgindade obrigada, assim como a introdução da tentação, através do personagem do jovem exótico chamado Labareda. Nomes, os de todas as personagens, que delatam o seu nível alegórico, através de uma simbologia tão simples quanto efetiva, que até introduz o cheiro do fado trágico.

Fui consultar as críticas do grande mestre Carlos Porto no livro intitulado Em Busca do Teatro Perdido (Plátano Editora. Lisboa, 1973) e ali me deparei com a d’A Promessa, de Bernardo Santareno, encenada por António Pedro, com o Teatro Experimental do Porto, o TEP, no Círculo de Cultura Teatral, há mais de cinquenta anos. Em Busca do Teatro Perdido compreendia espetáculos realizados entre 1958 e 1971. Nele dá conta da polémica que, na época, suscitava a obra de Santareno. No volume 2 aparece O Pecado de João Agonia, pelo Teatro Nacional D. Maria II (Empresa Rey Colaço – Robles Monteiro) em 1969, com uma encenação de Rogério Paulo, falhada, segundo a análise de Carlos Porto, pelo desequilíbrio na entidade de algumas personagens e pela falta de resolução entre duas tendências estilísticas: “Jogando-se entre “drama rural” e “tragédia grega”, entre “realismo” (poético, na palavra do autor) e “expressionismo” (diz o encenador)”. Porém, a encenação atual da Assédio Teatro e de João Cardoso consegue, de maneira emocionante, conciliar o caráter simbólico e o sociológico a que se refere Carlos Porto, na sua análise de O Pecado de João Agonia.

Aliás, também gosto de recuperar as apreciações de Porto sobre “[…] a beleza e por vezes o lirismo de certas partes do diálogo, o desenho vigoroso e, no entanto, subtil, denso e certo de algumas figuras”, referidas a A Promessa.

A polémica que pode suscitar o ponto de partida “pelo exotismo desumano (ou sobre-humano)” situa-nos, do meu ponto de vista, diante de uma parábola ou de um conto, exemplar uma ou o outro, no que diz respeito ao fanatismo e à inflexibilidade no âmbito das crenças, neste caso, religiosas.


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Em O Pecado de João Agonia assistimos ao processo que conduz ao sacrifício do filho homossexual, numa parábola exemplar sobre os extremos mortíferos a que podem levar os ditames mais ortodoxos do hétero-patriarcado, da fé religiosa ultracatólica e da homofobia. Um sacrifício e uma morte que ainda são realidade em muitos países do mundo e que, nos nossos, ainda pode até ser uma metáfora de muitas pessoas que sacrificam o seu ser autêntico, dando cabo dos seus desejos e necessidades afetivas e sexuais, e matando o que são e o que sentem para se adaptarem a esses ditames.

Em Santareno X2 há um elenco muito empenhado que, em geral, não mantém distância dos personagens que interpreta, oferecendo-nos o plano sociológico (classe social, profissão, crenças, ideologia, género, etc.)  e o psicológico (as complexidades internas e de caráter) de uma maneira identificativa muito aprimorada. Trata-se, portanto, de personagens dramáticos que estão ao mesmo nível que nós, o público, de tal maneira que os vamos acompanhando no desenvolvimento da ação. As atrizes e atores brilham, aproximando-nos dos seus personagens ao máximo, e conseguem superar uma representação historicizante, que os situa numa outra época, a da obra original (meados do século passado, talvez), assim como uma língua portuguesa que já não é exatamente igual à atual.

As vivências dos personagens estão nas atrizes e nos atores de uma forma empática, com as intensidades necessárias, na proporção adequada para gerar uma imersão no que ali se passa e para nos levar a uma catarse purificadora. Aliás, a fisicalidade acentuada da interpretação do elenco acompanha a dramaticidade, fornecendo uma frescura e, simultaneamente, uma conexão – a dos corpos – com energias de linhagem ancestral em que o local e o universal se tocam.

Outra virtude desta encenação, do meu ponto de vista, é o facto de jogar também com um peso muito coral e grupal de todo o elenco, sem privilegiar as hierarquias que podem supor certos papéis mais protagonistas. Todas as atrizes e atores têm uma função determinante e isto coloca o foco temático e dramático na pressão que exerce o contexto ficcional na emergência dos conflitos.

Sem dúvida, Santareno X2 da Assédio Teatro em Ponte de Lima foi uma experiência invulgar e profunda, uma revisão do que as pessoas, segundo o contexto e as crenças, podem chegar a fazer e a ser. Um aviso, também, sobre o importante que é progredir na emancipação e na liberdade.

 

(Agradecimentos a Célia Guido Mendes pela correção linguística deste artigo.)

BERNARDO SANTARENO X2. A Promessa + O Pecado de João Agonia de ASSéDIO Teatro

Encenação: João Cardoso

Dramaturgia: Regina Guimarães

Cenografia e figurinos: Sissa Afonso

Desenho de luz: Filipe Pinheiro e Nuno Meira

Sonoplastia: Francisco Leal

Desenho de lutas: Miguel Andrade Lopes

Assistência de encenação: João Castro

Produção executiva: Maria Inês Peixoto

Interpretação: Ângela Marques, Benedita Pereira, Daniel Silva, Inês Afonso Cardoso, João Cardoso, João Castro, Maria Inês Peixoto, Pedro Galiza, Pedro Quiroga, Rubén Pérola, Susana Madeira

Coprodução: ASSéDIO, Teatro Nacional São João

Teatro Diogo Bernardes. Ponte de Lima, 8 e 9 de dezembro de 2023.

Afonso Becerra

Afonso Becerra

Director da erregueté | Revista Galega de Teatro. Pertence ao seu Consello de Redacción desde o 2006. Doutor en Artes Escénicas pola Universitat Autònoma de Barcelona. Titulado Superior en Dirección escénica e dramaturxia polo Institut del Teatre de Barcelona. Titulado en Interpretación polo ITAE de Asturies. Dramaturgo e director de escena. Exerce a docencia en dramaturxia e escrita dramática na ESAD de Galiza desde o ano 2005. É colaborador, entre outras publicacións, de revistas de cultura e artes performativas como 'ARTEZBLAI', 'Primer Acto', 'Danza en escena', 'Tempos Novos', 'Grial'. Entre setembro de 2019 e xuño de 2021 foi colaborador especialista en artes escénicas da CRTVG, no programa 'ZIGZAG' da TVG. Desde setembro de 2022 é colaborador semanal sobre artes escénicas do 'DIARIO CULTURAL' da RADIO GALEGA.
Premio Álvaro Cunqueiro da Xunta de Galicia en 2001. Premio María Casares á Mellor Adaptación teatral en 2016. Premio de Honra do Festival de Teatro Galego, FETEGA, do Carballiño (Ourense) en 2020. Mención Honrosa no Premio Internacional de Xornalismo Carlos Porto 2019 do Festival de Almada (Portugal, 2020).

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