Joana von Mayer Trindade e Hugo Calhim Cristóvão, da Nuisis Zobop do Porto, vão apresentar o seu último trabalho: Fuga para o Tempo Presente. O Leve Poder da Lua Apenas Queima os Olhos no XI festival Escenas do Cambio 2025 na Cidade da Cultura, na quinta-feira, 8 de maio às 18h15, na Sala 1 do Museu Centro Gaiàs.

Afonso: Tudo parece indicar, olhando para o vosso site, e também conhecendo um bocado a vossa obra, que a Nuisis Zobop é algo mais do que uma companhia que faz espetáculos de dança. Então eu queria perguntar-vos o que é a Nuisis Zobop? E porquê tem esse nome tão enigmático?
Hugo: A Nuisis Zobop é uma companhia de dança. Podemos dizer assim. Ou seja, é uma entidade ou uma estrutura que basicamente atua no âmbito da dança, da dança contemporânea. Apesar de ter muitas influências da filosofia, da psicologia e até algumas influências daquilo que é um pensamento místico, um pensamento mais esotérico, ou seja, digamos, dimensões mais escondidas e mais esquecidas da consciência. O nome tem a ver com duas deusas egípcias, Nuit e Isis juntas. Nuit era a deusa das estrelas, representada no antigo Egipto como a abóbada celeste que é uma mulher da qual caem estrelas e chuva, digamos, de energia ou chuva de estrelas. E Isis era uma deusa da Terra, mágica. Portanto, isto é, porque nós, com este nome, estamos a reportar a tradição performativa não propriamente à Grécia Antiga, mas antes disso, ao antigo Egipto, como é muito comum em dança nalgumas referências principais de dança do início do século XX, como a Ruth Saint Denis. Zobop é um termo que vem das minhas origens em África, significa aranha. Significa qualquer coisa que tece.
Joana: Eu gostaria de acrescentar, apenas, que foi fundada por mim, Joana von Mayer Trindade, e pelo Hugo Calhim Cristóvão, em 2004. Começamos, no início, por fazer muita investigação e trabalho de corpo no estúdio, sem almejar em fazer espetáculos. E só muito mais tarde é que começamos a fazer espetáculos. O nome, Nuisis, também implica uma homenagem às mulheres, porque estas duas figuras são deusas femininas. E a verdade é que até agora essa orientação tem sido maioritária
Eu também fiz um solo chamado ZOS (She Will Not Live), que era uma revisitação de mulheres importantes da performance art e da dança, que marcaram o meu percurso e que, de certa forma, foram uma referência, como Marina Abramovic, Karen Finley, Deborah Hay, Yvonne Rayner. Portanto, existia esse lado de uma espécie de elevação da mulher. E, deste lado feminino, de querer abordar esses aspetos femininos e dar importância à mulher, algo relativo à nossa época e ao contexto. Em Portugal só há cinquenta anos é que estamos fora do fascismo e a mulher não podia votar, não tinha voz. Mais tarde, também fiz um solo, Veleda, que era uma homenagem a Maria Veleda, a primeira mulher que votou em Portugal. Zobop também tem que ver com transformação, para além de tecer e de ser uma espécie de rede.

Afonso: Já disseram alguns nomes, mas quais é que são as vossas referências principais no que diz respeito à dança.
Joana: Tudo o que é exterior e tudo o que é interior à dança. Tanto eu como o Hugo nos movemos nessa dialética. Ou seja, tudo o que é exterior, como a filosofia, a psicologia, o mundo, as pessoas, essa pesquisa e tudo o que é específico, interior à dança, tudo aquilo que nos marcou, algumas pessoas, algumas referências no meu percurso como coreógrafos, como professores, como colegas de trabalho, que foram uma inspiração para mim no estúdio, na prática. Posso dizer vários nomes, desde teóricos a práticos: Isabelle Launay, Bojan Manchev, filósofo, desde coreógrafos portugueses a coreógrafos estrangeiros, como Deborah Hay e muitos outros. Mas acho que nós nos movemos nessa solidão e nesse mundo, nesse interior e nesse exterior. E é nesse vetor que alimentamos o nosso trabalho em estúdio.
Hugo: Eu só acrescentaria talvez algumas referências que, sendo exteriores à dança, de certa maneira, são muito importantes para nós e para mim. São aqueles pontos em que o teatro, ou seja, em que a teatralidade quase que se esgotou a si própria e chegou a um ponto em que se transcende em termos de técnica, de movimento, de corpo, e eu falo aqui em termos de espetáculos. Falo aqui de Meyerhold. Indiscutivelmente, seja o facto de Meyerhold ser considerado, digamos, teatro, mas é um trabalho que já começa a lançar as pontes para um corpo, a lançar as pontes para uma expressão teatral que não está dependente de uma certa coerência, em ações físicas. Indiscutivelmente Grotowski, indiscutivelmente trabalhos como o seu O Príncipe Constante. E indiscutivelmente todas aquelas procuras. Eu não diria Eugénio Barba, porque isso acaba por estar muito sistematizado, mas todas aquelas procuras teatrais que se deslocaram do Ocidente, que se deslocaram de uma conceção dramática de personagem intencional, mesmo das chamadas memórias emocionais, e que foram para qualquer coisa que era uma busca de transcendência no corpo. E aí encontrou-se o Kathakali, encontrou-se o Bharatanatyam, encontraram-se as danças de possessão da Mongólia e do Bali, encontram-se as danças africanas, encontra-se toda uma tradição de corpo bastante sistematizada também nas danças de possessão vodú, ou seja, toda uma tradição de trabalho de corpo que tem como ideia um ultrapassar e um arrasar da noção de personagem. E qualquer coisa em que há uma transformação real de um quotidiano para qualquer coisa que, continuando a ser quotidiano, é outra coisa. E que, se pensares em termos de dança, sendo completamente oposto, está muito relacionado com todas as pesquisas dos anos setenta, a Judson Church, uma dança que parte do quotidiano para o transcender. Depois acabo por ter eu, que sou mais exterior, digamos, à dança, porque a minha formação é mais em teatro físico, referências em dança verdadeiramente técnicas, ou seja, a extra corporalidade e a extra-quotidianidade de coisas como o próprio ballet clássico. Para nós é importante, em termos de dança, ir ver esses movimentos do ballet clássico e perceber o que é que estava antes. Porquê arabesque, porquê fouetté, toda aquela dimensão que havia também de luta e de grotesco, tecnicamente falando. E aí, uma última referência, a que eu posso chamar dança, é indiscutivelmente a tradição dos mimos e da Commedia d’ell Arte. Seja aquela coisa popular, que depois encontra-se também em teatro, em Étienne Decroux, Charles Dullin, François Delsarte, que Isadora Duncan estudou. Portanto, há aqui qualquer coisa de vários mundos.

Afonso: Como definireis a vossa poética?
Joana: A poética da Nuisis Zobop caracteriza-se também por várias influências, e várias entradas, e vários vetores tangenciais que se cruzam e que se deixam viver a eles próprios, ou seja, a poética da Nuisis Zobop hoje poderá ser diferente daqui a uns anos, mas acho que somos muito influenciados por esta pesquisa de corpo, de pensamento. Atualmente pela influência daquilo que são os filósofos portugueses, alguns artistas portugueses, pensadores portugueses que foram tratados, alguns, nas nossas obras desde Raul Leal, Natália Correia, Almada Negreiros… Agora, atualmente, em Fuga para o Tempo Presente, Herberto Hélder. Após uma estadia muito grande, minha, no exterior, lá fora, no estrangeiro, onde me formei, em França, no Japão, na Índia, num regresso a Portugal, sentimos que foi importante voltar às raízes e voltar a perceber estes personagens ou atores fundamentais da história de Portugal, da filosofia, do pensamento. Mas tentamos traduzi-los no corpo, na ação no estúdio. E, depois, também se caracteriza por uma poética de transformação, de arriscar, de tentar criar mundos impossíveis, ou que nós desconhecemos, de metamorfose, como próprio nome também indica. O feminino de tecer teias, de chegar, de criar uma rede, de criar conexões. E é nesse caminho que estamos diariamente a cavar, a explorar, a aprofundar.
Hugo: Eu diria que, em primeiro lugar, é uma poética do rigor, centrada no espetáculo. Ou seja, centrada naquele ritual, naquele sítio, naquele espaço, naquilo que vai acontecer, com um cuidado muito grande pela composição e pelo trabalho corporal propriamente dito. Ou seja, é uma poética em si própria, e é uma poética muito ambiciosa, no sentido em que não quer negar coisas como intensidade, qualidade, transformação, generosidade, mas, ao mesmo tempo, não quer ser diletante, imediata, não quer ser mera exposição. Portanto, está à procura, de certa maneira, de trazer o pensamento para o corpo e o corpo para o pensamento. Esta ideia que se tu danças não pensas, se pensas não danças, sempre me confrontou. Portanto, é no fundo, a ideia de tentar trazer as duas coisas ao mesmo tempo, sem que nenhuma delas perca. Ou seja, são espetáculos, digamos, físicos, dependendo muito do trabalho do intérprete, mas, ao mesmo tempo, também terão bastante pensamento.
Eu diria que é, depois, em termos de construção espetacular, uma poética. Esse termo, “poética” é muito justo. Não é uma narrativa, não é um drama, é uma poética constante. Tem algo de épico, no sentido de um estranhamento consigo próprio. Também a separação que sempre nos custou muito, entre o espaço da teatralidade e o espaço da dança, e que é uma separação contemporânea… Simultaneamente, é uma poética da ação e uma ação por impulsos. E, ao mesmo tempo, uma poética de dança. É isso. Não sei. Tem uma dose de tentar devolver a arte da dança ou a arte cénica àquilo que, mesmo que haja luzes, mesmo que haja isso tudo, mesmo que haja música, há aquilo que é essencial, que é a vibração e a sinestesia de seres humanos a tocarem-se para além daquilo que é dito, para além daquilo que é mesmo movido, para além daquilo que é dançado. E isso exige, que é o que eu não gostaria de deixar de enfatizar no meio disto tudo, exige um extremo rigor e uma extrema obsessão em certos aspetos como a montagem. Outra coisa que eu poderia dizer é o chamado sonho, o ponto misto entre uma arte como veículo e uma arte como apresentação. Ou seja, é essencial que o bailarino, que a pessoa que está lá, faça aquilo como um veículo para si próprio e acho que isso se nota e, por outro lado, é essencial, ao mesmo tempo, que isso seja apresentado num lugar de confronto, partilha, que só a situação do espetáculo cria.

Afonso: Tinha aqui uma outra pergunta que eu acho que já está respondida. Mas se calhar querem acrescentar algum pormenor que é – Pensando na dança contemporânea portuguesa, no que podemos ver noutras companhias, fazendo um bocado o exercício injusto da generalização, o que é o que oferece a Nuisis Zobop ou em que se diferenciam as vossas propostas, do que podemos observar no panorama das companhias de dança contemporânea de Portugal.
Hugo: É difícil, porque, muito honestamente não é algo em que nós passemos muito tempo a pensar. Muito sinceramente não é uma questão, claro que existem tendências que se podem reconhecer agora, mas são tendências que eu diria mais da programação. São tendências mais de quem programa que acaba por condicionar os espetáculos que vê e, digamos, escolhe do que tendências da própria dança. Nós tentamos, para além daquilo que nos especifica criar uma qualidade, promover uma certa integridade no trabalho, qualquer coisa de integro e qualquer coisa de artístico. E isso faz com que não possamos perder muito tempo no jogo das comparações, até a tentar perceber qual é a tendência.
Joana: Sim, eu acho que é uma pergunta sempre difícil a ser colocada aos próprios coreógrafos. Acho que nós conseguimos falar mais daquilo que nos especifica, qual é a nossa singularidade. Acho que há uma coisa que vem de acordo com esta última resposta do Hugo, e é que nós não procuramos a tendência, mas procuramos fazer aquilo que nos move, e aquilo que nos toca, e aquilo que nos provoca, e que nos coloca numa situação de risco, muito mais do que se estamos instalados num agradar a X ou a X ou Y.
Hugo: Nós tentamos estar sempre a pensar no futuro. Por exemplo, mesmo peças passadas que já nos preencheram completamente, desde que estão feitas eu começo a pensar no futuro. Qual é a próxima? E tentamos que a tendência, mesmo a nossa, surja na continuidade de um processo. E depois a dança é como as outras artes. E mesmo a dança contemporânea. Nós é que não compreendemos muito bem isso porque a dança parece que tem uma perspetiva de sucesso imediato. As pessoas batem palmas, não batem palmas. Há programação ou não há programação. Mas, na realidade, se tu fores 1915/1920 aqui em Portugal e fores ver quais eram os poetas famosos naquela altura e ver quais foram os que ficaram vais perceber que os ficaram, grande parte deles passaram despercebidos e com a dança passa-se um bocado o mesmo, ou seja, a tendência mais geral que nós temos aqui e as tendências de programação, eu diria que tenho a certeza que são as que não vão ficar. Portanto, olhar para elas e passar muito tempo nisso seria um risco. Porque tu, no fundo, quando te conformas a isso, estás a conformar-te ao passado e a qualquer coisa que, no decorrer do tempo, terá uma tendência a ser profundamente irrelevante.

Afonso: Ninguém sabe responder esta pergunta. Vamos ver que respondeis vos. Hoje é o Dia Internacional da Dança. É uma coisa casual que a entrevista está a ser gravada no Dia Internacional da Dança, 29 de abril de 2025. Não foi procurado, porque a entrevista ia a ser gravada no dia antes, em que houve um apagão histórico, do qual não se para de falar nestes dias. Primeiro foi o Papa, depois o apagão. E agora vamos falar do verdadeiramente importante: o que é a dança?
Joana: Eu vou disparar aqui uma frase que coloquei num artigo que fiz, que se chama “Ponto e Caos”, dita pelo Ramsay Brut, que é um teórico da dança. Ele diz: A solidão, a dança poderá ser… ele não me diz que a dança é, mas eu vou dizer: A solidão de estar no palco com uma inclinação para o mundo.
Hugo: É muito engraçado, porque pegando no que a Joana disse vem o termo experiência. Isto foi o Hugo Monteiro, um filósofo, que mencionou há uns tempos. Disse que a experiência é qualquer coisa que te tomba em cima. Ou seja, nós temos uma noção de experiência, como qualquer coisa que vamos vendo e repetindo. Mas é algo que nos tomba em cima. A dança é qualquer coisa que, quando eu tenho o privilégio de a ver, é mais a ver e a dirigir, e a montar, é qualquer coisa que nos tomba em cima. A dança é generosidade e é sinceridade. Ou seja, é um dos poucos sítios, um dos poucos espaços onde essa generosidade e essa sinceridade é possível. Se eu estivesse a tentar dizer a uma pessoa para tentar compreender o que é dança e o que é que é um bailarino ou uma bailarina, pelo menos daqueles que eu respeito intimamente, é generosidade em ação, é uma dádiva, é uma partilha, é uma ultrapassagem de si, é amor, mas isto não de uma maneira, digamos, básica. É dádiva. É uma ponte. Ou seja, é uma lança. É um lançamento para um espaço onde a pergunta sequer deixa de fazer sentido.
Afonso: Obrigado.
Joana: Ou então, como dizia a Isadora Duncan, não dançamos com os pés, mas com a alma.
Hugo: Há um evangelho gnóstico. Acho que tem uma, digamos, frase que é: tu bates à porta, bates à porta, bates à porta, e depois a porta abre e é um assombro. A dança é o que aparece quando a porta abre.

Afonso: Depois dessas definições, eu quero ver mais dança. Agora, já acho que é o único que quero ver. Acabámos de refletir, um bocado, sobre o que é a dança, e agora vamos concretizar, se possível, o que é Fuga para o Tempo Presente. O Leve Poder da Lua Apenas Queima os Olhos.
Joana: É isso como o Hugo disse, é uma espécie de caminho que temos estado a fazer com estas peças e chegamos ao ano 2025 com o mundo como está e a peça tem um propósito poético, como todas elas têm, mas também tem um propósito de reflexão e de tradução, de tentativa de tradução possível com o corpo daquilo que estamos a viver atualmente no mundo. Desde a guerra, desde a extrema-direita, que se começa a fazer sentir em quase todas as partes da Europa, desde a pandemia, desde ontem, o apagão, que ninguém sabe exatamente qual é a explicação, o porquê. E tem esse lado geopolítico, esse lado social, e essa tentativa da fuga para o tempo presente, que é talvez a parte mais poética. O que é que nós podemos fazer? Podemos dançar, dançar, dançar, resistir. E uma coisa muito bonita que se passou ontem aqui no Porto foi que, com o apagão, de repente, as pessoas estavam todas a pôr os corpos na rua, e não havia telemóveis, e as pessoas estavam todas a conviver na rua. E o que nós tentamos fazer diariamente é ir para o estúdio e dançar e não esquecer o corpo, porque é essa a nossa forma de continuar a resistir e estar no presente. E é essa a nossa poética. Por enquanto, ainda o podemos fazer. Ainda é possível fazer isso. E, portanto, é por esse espaço de liberdade que nós estamos a lutar, e essa é a fuga para o tempo presente.
Hugo: Houve várias peças até agora que foram colocadas sempre em teatros e sempre num local teatral e com uma certa conceção cénica relativa disso. Esta não é assim. Ou seja, esta é uma peça para espaços não convencionais, sem esse aparato. Está muito baseada em Herberto Hélder, nesta ideia de um poema contínuo de qualquer coisa que continua, que começa e continua, e que não está determinado por uma hora e por uma data de apresentação. Depois, face a situações como aquelas que se vivem agora, ou mesmo face a situações como a que todos nós vivemos já, de alguma maneira, situações de opressão, ataque a Gaza, situações de pleno horror, vale a pena dançar? Ou seja, qual é a utilidade disso? Qual é o sentido disso? Eu não falo de ir fazer manifestações sobre Gaza, não falo de ser um ativista. Mas porque é que não nos colocamos nesse local e tentamos verdadeiramente modificar as coisas, socialmente falando. E há qualquer coisa na dança atual, que é uma espécie de procura e uma espécie quase de piggybacking em grandes causas. Sejam causas LGBT, sejam causas Queer sejam causas de guerra, sejam causas disso tudo, nós vamos para palco e falamos sobre isso, sobre coisas que são extremamente violentas, e que nos acontecem e que é importante falar delas. Mas nós não somos políticos. Isso é verdadeiramente ação política. É que uma coisa são os partisans, os anarquistas é, por exemplo, a revolução espanhola, a Catalunha. Ou seja, uma coisa é uma verdadeira ação, digamos, política e nós, de repente vamos para palco, muitas vezes em disposições cênicas convencionais e falamos disso. Portanto, a questão para nós é que o mundo realmente, nesta altura, assalta os privilégios que temos e que estamos a pensar que durarão sempre e estão em grande risco de cair. Há situações e há espaços em que as pessoas verdadeiramente não podem sequer pensar nisso. Agora também é verdade que o exército anarquista do Nestor Makhno na Ucrânia, fazia teatro, portanto, fazia teatro no meio de uma situação de guerra. É verdade que em Berlim, depois dos bombardeamentos, aparecia teatro, logo. É verdade que quando nós estávamos aqui sobre a ditadura havia um teatro independente muito forte. Portanto, para nós, é um bocado isso, é pensar o que é que nós podemos fazer que justifique o facto de não estarmos a fazer ação política real. Eu digo real mesmo, não digo uma tendência de programação. Não digo isso. Digo ação política real. Portanto, foi a tentativa de responder a isso, a essa sensação. Depois a partir daí, começámos a pensar nesta ideia do transcendental, que é uma coisa que condiciona a nossa experiência. Ou seja, antes era algo que estava lá em cima, Deus, e agora é uma espécie de qualquer coisa que condiciona toda a nossa experiência. E fomos pensar para esse espaço do presente e da fragilidade. Como é que tu podes fugir para o presente? Fugir agora. As fugas, como na última peça, têm sempre uma espécie de repetição temporal. Há qualquer coisa que se repete. E aqui é um bocadinho como é que tu podes chegar a um espaço em que fujas para esse sítio em que o tempo desaparece. Portanto, isto é mais ou menos a ideia. Mas é uma procura da fragilidade, de qualquer coisa que é frágil, e nós somos intrinsecamente frágeis. Antes, na última peça, aquilo que nos obcecava era a ideia da morte, digamos, era a ideia de ultrapassar esse limite. Agora, aqui é mesmo o presente, o dia a dia, a repetição. Ou seja, como é que nós conseguimos aí ter o golpe dado, percebes? Qualquer coisa mais diagonalizada, mais aqui. Como é que isto surge? O que é que é na realidade? Ainda não sei. Estou quase a saber, mas ainda não sei. Vamos sabendo.

Afonso: Qual é a vossa relação com a Galiza?
Joana: É uma relação de infância. Porque nós somos aqui do Norte e sobretudo também os meus avós eram de Vila Nova de Cerveira, muito perto de Valença. Eu sempre ia a Vigo quando era miúda. Agora, atualmente, é uma relação de nós gostarmos das pessoas que temos conhecido na Galiza, de termos interações muito positivas com as pessoas que temos vindo a conhecer, espontâneas e generosas, e que têm apoiado e acreditado no nosso trabalho e no nosso percurso. E também é uma relação um bocadinho mítica, porque Galiza e Portugal têm uma relação histórica. Estão separadas, mas estão juntas. São povos que têm muitas coisas que se aproximam, desde a língua, desde o território. No fundo, é um rio. O rio Minho é aquilo que nos separa, não é assim? Eu acho que estamos muito próximos e muito afastados. E isso também é muito belo e interessante. E às vezes acho que poderíamos estar mais próximos ainda nesta parte cultural, porque somos irmãos, na verdade. E eu acho que isso justificaria muito mais interações e muita mais partilha de conhecimento, de danças. E acho que estamos a caminhar para essa proximidade, e isso agrada-me bastante, porque acho que temos muito a aprender uns com os outros. Eu, sobretudo, sinto que tenho muito a aprender com a Galiza, com as pessoas.
Hugo: Eu acho que a Joana já disse. O que eu iria dizer é que se trata de uma relação espontânea. É uma relação, muito no caso da Joana, e até do meu caso, é uma relação muito antiga, no sentido em que é muito perto de Cerveira. Há uma espécie de sede pela cultura, na Galiza, que nesta altura luta pela identidade, uma língua oprimida, ou seja, um colonialismo que é descoberto muito próximo de nós. Portanto, nesse aspeto, há algo muito rico em que podemos aprender. Há uma paisagem que é muito característica que começa a aparecer lá para o Minho, e que não é, eu vou dizer uma coisa que é uma barbaridade, mas para mim é muito claro, que não tem uma matriz cristã. Eu até diria que não tem uma matriz monoteísta. E isso é muito bom. Encontrar aqui tão perto, qualquer coisa que está mais deslocada. Há o galaico-português, as cantigas de amigo que eu lia, percebes? Ou seja, esse princípio da língua e esse mundo trovadoresco, essa qualquer coisa provençal que veio daí. E, portanto, o que eu sinto é que há uma dupla colonização. Como é que eu consigo explicar isto? Que foi imposta tanto ao norte de Portugal, se quiseres, como à Galiza, ou seja, mesmo o processo de Portugal se tornar Portugal foi uma investidura para o sul. Mas há aqui qualquer coisa que até miticamente, em livros de História, aparece toda a simbologia dos Dragões, dos Labirintos. Tudo isso. Todo esse mundo, qualquer coisa mais céltica. Há uma matriz qualquer que está muito presente na cultura, naquele poeta [Uxío Novoneyra], que nos deram a conhecer vocês os dois, tu e o Uxío Novo, que está muito presente. Isso, como também no nosso Teixeira de Pascoaes. Portanto, é essa a relação. E depois eu encontro uma espontaneidade muito grande na reação àquilo que nós fazemos, muito grande. Já desde quando, pronto, não sei se devo, quando a Kirenia viu o espetáculo, a reação dela. Não estou a falar de uma coisa intelectual. Estou a falar de uma coisa muito física, muito de toque, muito. É uma, digamos, relação muito simples. Agora vou dizer uma coisa um bocado tonta. É como a aldeia do Asterix. A Galiza tem qualquer coisa, há qualquer coisa da aldeia do Asterix, que ainda com o Império Romano à volta, com a qual eu acabo por me identificar.

Afonso: E já para acabar, quais as expectativas da vossa apresentação no festival Escenas do Cambio?
Joana: Eu acho que, para já, um momento muito importante, porque vai ser um momento de libertação e quase de libertação da própria obra, em que ela vai se confrontar com os espetadores, e vai ser num ambiente muito especial, porque, pela primeira vez, vamos a fazer uma ante estreia fora de Portugal, e acho que isso é um momento marcante para o nosso trabalho. E estou muito, também eu própria, com expectativas do que esse momento de encontro e de espelho e de troca irá proporcionar. E acho que o mais importante é que exista essa vibração, essa partilha desse espaço de propriocepção, de risco, de poema contínuo, e que os espetadores façam essa viagem connosco. Mas esse momento de encontro é quase como lances. O pássaro vai voar e possamos voar todos juntos. Acho que é muito isso, uma metáfora.
Hugo: Para mim, é muito bom ser fora de Portugal. Para mim, é muito bom ser num espaço não convencional. Eu tento sempre diminuir as minhas expectativas. A expectativa é que eu esteja feliz. É que sinta a felicidade que tenho sentido nalguns ensaios. A expectativa é que eu esteja feliz, e que quem dança também esteja feliz, e que a Joana também esteja, digamos, feliz. E que haja uma partilha, uma vibração com o público, mais, com um espaço, com isso tudo. Mas a minha expectativa é sempre essa, até eu diria de uma maneira muito honesta, é que eu possa ver o espetáculo e descansar.
Afonso: pois por aqui fica a nossa conversa, que vamos abrir e partilhar com as pessoas que quiserem. E, sobretudo, fica o convite para ver o espetáculo no festival e para continuar a acompanhar o vosso percurso, tão estimulante. Muito obrigado, Joana. Muito obrigado, Hugo.