Fado Alexandrino de António Lobo Antunes, na versão teatral de Nuno Cardoso com o TNSJ do Porto, no Teatro Municipal de Tui a 31 de janeiro de 2025, foi um luxo de produção bem musculada. Quatro horas de duração, com três partes: Antes da Revolução; A Revolução; Depois da Revolução. Uma sorte de puzzle que tece as histórias pessoais de um grupo de militares ao longo de três épocas históricas de Portugal: as guerras na África colonial; o período em que a Revolução dos Cravos se estava a engendrar e depois a realizar; e a iniciação democrática junto da instauração do incipiente sistema capitalista. A transição de valores: da Ditadura para o despertar da consciência revolucionária e de esquerda, até chegar à democracia, liberdade e liberalismo económico. Porém, vai ser precisamente esse lado mais pessoal o que faz com que os tipos sociais dos militares, assim como a já quase lendária Revolução, tomem uma dimensão muito humana e compensatória. É a vida a partir e a estourar as costuras do relato bem feito, a estilhaçar com palavrões, apaixonamentos, embebedamentos e outras vergonhas inconfessáveis a grandiloquência da épica dos heroicos factos da História que se quer escrever com maiúsculas. O lado pessoal dos relacionamentos familiares é exibido; o que faz a distância e a guerra naqueles homens jovens, com ideais, mas também com desejos imanentes, fruto de uma fase da vida em que as hormonas e as ganas de festa são tão importantes ou mais do que qualquer missão patriótica ou política.
O espetáculo faz que fiquemos presos da convulsão, da agitação e da alucinação que nos produz o cruzamento continuo das diferentes histórias pessoais em cenas simultâneas, com personagens que narram e dialogam, ao jeito do drama épico, estando fora e dentro da ficção dramática, a interagir entre eles e também a falar para nós, que, por vezes, parecemos ocupar o lugar do Capitão (no palco, figurado por um manequim sem farda militar). Tudo isso misturado com excertos audiovisuais, imagens verídicas da época em documentário histórico, e um filme atual realizado com o elenco e as suas personagens, de estilo surrealista.
Afinal esse cruzamento consegue um efeito tão convulso, agitado e de alucinação, quanto são essas histórias de homens perdedores. E ainda me pareceu que assomava, por entre a Revolução e a Democracia, metaforizadas nesse grupo de homens desgraçados, a possibilidade nefasta de acabarem por ser também perdedoras face à ascensão das ultradireitas, para cumprir o fado de que a História é cíclica e se repete, igual à métrica que nos faz aperceber-nos do alexandrino. Lembrem o discurso do Porta-Voz-Monárquico-Cristão face às liberdades democráticas, reclamando um regresso das censuras.
Eu não li o romance Fado Alexandrino de António Lobo Antunes, nunca morei em Portugal nem estudei, na Galiza assimilada a Espanha, a Revolução do Cravos nem a história do pais vizinho. Portanto, a minha leitura deste espetáculo provém exclusivamente do palco e do incrível trabalho, a todos os níveis: um elenco formado por Ana Brandão, Joana Carvalho, Jorge Mota, Lisa Reis, Nuno Nunes, Patrícia Queirós, Paulo Freixinho, Pedro Almendra, Pedro Frias, Roldy Harrys, Sérgio Sá Cunha e Telma Cardoso, quase todos a fazer diferentes personagens, mudando de caracter e, às vezes, também de estilo (entre o realismo e a estilização hiperbólica da farsa), de uma maneira surpreendente e sempre com um máximo envolvimento. A simultaneidade de ações cénicas, por vezes também de cenas (situações dramáticas), gerava uma eletrizante paisagem, em tensão entre o dionisíaco e a ordem apolínea necessária para não se perder a continuidade narrativa das histórias cruzadas e sobrepostas. A adaptação e dramaturgia de Fernando Villas-Boas e Florian Hirsch é a base, e tudo parece indicar que cuidaram não só as questões estruturais e narrativas do romance, mas também a riqueza literária, trasladando excertos diretamente para a boca dos atores. No caleidoscópio deste Fado Alexandrino cénico também joga a envolvência do som e das músicas, de Joel Azevedo e de Pedro “Peixe” Cardoso, para criar atmosferas emocionais e para evocar espaços e situações dramáticas, como o Bar Boîte Madrid. O desenho de luz de Nuno Meira e a cenografia de F. Ribeiro não escondem a natureza teatral da proposta, potenciam-na facilitando um espaço flexível para o jogo em que outros espaços ficcionais podem ser evocados até em simultaneidade, sem esquecer elementos altamente simbólicos como o chão de empedrado típico das cidades portuguesas e do centro de Lisboa, a camioneta militar no lado direito, e a casa com varanda no esquerdo.
Quatro horas num calidoscópio em que a História com maiúsculas do período que trouxe a democracia da República Portuguesa, desce dos altares da epopeia heroica para a aventura vital de quem para ganhar perdeu. Desce para o lado da carne, dos fluidos, das hormonas, da vida no que tem de mais prosaico e fascinante. De facto, assistimos a momentos muito fortes.
Houve algumas pessoas do público que foram embora, despois da primeira parte, e outras poucas, depois da segunda. À margem dos gostos ou das circunstâncias pessoais que podem influir na receção de um espetáculo, acho que esta é uma proposta exigente para o público, acostumado a produtos de curta duração. Aliás, também acho que pode influir a estrutura caleidoscópica ou em puzzle, a qual nos permite perceber que se estão a representar umas personagens e as suas histórias, mas a sua compreensão não vai ser imediata nem confortável, senão, melhor, diferida e estilhaçada. Porém, pela metade da segunda parte, e já plenamente na terceira parte, chegamos à conclusão e ao fecho das histórias, embora, no princípio, pudesse parecer-nos que aquilo não acabaria dentro da ordem do drama e do relato. Assim sendo, no final acabamos familiarizados, conhecendo as personagens, as suas graças e as suas desgraças.
Um luxo este espetáculo monumental que nos coloca perante a mais imaginável paisagem humana da Revolução, com o seu antes e depois. Impressionante!
(Os meus agradecimentos para Maria José Albarran Alves de Carvalho pela revisão linguística deste artigo. Agradecimentos também para o Camões – Centro Cultural Português em Vigo e para o Centro Dramático Galego pelo autocarro que nos levou ao teatro em Tui e por facilitar que possam vir à Galiza espetáculos portugueses destas dimensões.)