Primeiro espetáculo de 2025. Na sexta-feira, 10 de janeiro, fizemos uma Viagem à Lua com André Murraças, Francisco Goulão, Gonçalo Santos e João Lara, inspirada na vida e na obra do genial Federico García Lorca. Foi a estreia teatral, pela primeira vez em Portugal, de Viagem à Lua, o guião cinematográfico surrealista, nunca realizado em filme, numa coprodução do Teatro Diogo Bernardes de Ponte de Lima.
Fora da esteira do drama, o espetáculo, com encenação, cenografia e figurinos de André Murraças, é um brinquedo teatral que faz homenagem ao conceito de teatro popular de La Barraca de García Lorca. Não há sofisticações intelectuais, tecnológicas nem dramatúrgicas, mas a proximidade de uma espécie de documentário teatral em forma de cabaré.
A realidade (atores, palco, adereços, maquinaria cénica) e a fantasia (imagens, figuras, personagens, cenas de natureza extraordinária) convivem em palco sem dissimulações, ocultações nem fingimentos. Da mesma maneira que não se esconde, nem na estética nem nos conteúdos, a rebeldia perante discriminações e violências por razão de género, de orientação afetiva e sexual das pessoas, pela sua identidade e as suas formas de se mostrar, pela ideologia etc.
Viagem à Lua coloca no centro a figura de Federico Garcia Lorca, numa viagem pela sua vida e obra. Os próprios atores dão-nos as bem-vindas ao “Cabaré Lorca”. Murraças é o mestre de cerimónias e o narrador, que começa animando uma colagem de desenhos e de fotos, manipulada num retroprojetor, para realizar o guião de Viagem à Lua. Esse artesanato, de estilo um bocado “vintage”, faz com que a calidez do humano sempre esteja presente e dá-nos a chave da estética do espetáculo. Nele há números de baile flamenco, executados por João Lara, em que o “duende” se traduz numa paixão que confunde felizmente o masculino e o feminino; números musicais com temas da copla andaluza e da música pop espanhola, a lembrar figuras tão populares e transgressoras como Miguel de Molina, interpretados em “lip-sync” e com os figurinos bidimensionais. As personagens dos números musicais parecem desenhos animados, por causa desses figurinos bidimensionais, do tipo das bonecas de papel recortáveis. Nessa mesma linha também estão os números de marionetas, no mesmo estilo e num registo muito lúdico e popular. Tudo para ilustrar alguns dos amores e das amizades do poeta e dramaturgo granadino, que servem não só para falar de uma pessoa invulgar, mas também para ilustrar a sua exemplar luta pela liberdade, em momentos históricos tão conturbados como os prévios ao golpe militar fascista, que levou à Guerra Civil Espanhola e à Ditadura. Um espetáculo, popular e elegante, muito bem equilibrado na sua dimensão política, histórica e festivo-teatral, que deixa um olhar amoroso, reivindicativo e celebrador.
A lua sempre exerceu uma sorte de fascinação para artistas, poetas e namorados. Ela não é o astro rei, mas só o seu espelho que reflete a luz. Em Bodas de sangre a personagem alegórica da Lua ilumina os amantes quando tentam escapar do seu destino pela floresta. A Lua casa eros e tânatos. Porém, o satélite de Viagem à Lua parece inspirar-se ou até render homenagem ao filme francês de 1902 Le Voyage dans la Lune de Georges Méliès, pioneiro do cinema de ficção científica, que representa essa necessidade de utopias e a reivindicação dos sonhos. Na vida e na obra de Federico García Lorca, assassinado aos 38 anos pelos fascistas, também as utopias e os sonhos são energias principais, estando muito presentes no espetáculo de André Murraças, porque a lua dos namorados e dos poetas, tal como o teatro ou o cinema, são entidades propícias para a magia que nos eleva do chão nas quedas.
(Revisão linguística de Maria José Albarran Alves de Carvalho.)