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‘CALVÁRIO’ de Rodrigo Francisco | Companhia de Teatro de Almada

O calvário da correção tem piada

'Calvário' de Rodrigo Francisco. Companhia de Teatro de Almada. Foto: Patrícia Mateus.
'Calvário' de Rodrigo Francisco. Companhia de Teatro de Almada. Foto: Patrícia Mateus.

O teatro como metáfora e reflexo do mundo, sob a perspetiva da comedia, oferece nesta nova criação de Rodrigo Francisco – a 187ª produção da Companhia de Teatro de Almada, estreada a 5 de julho de 2023 – questões sem resposta e, nalguma medida, uma libertação pelo humor.

Calvário, como parece indicar o próprio título, pode levar-nos a pensar nessas situações complicadas que se dão nas relações entre as pessoas, na sua diversidade, num contexto de procura da igualdade, do equilíbrio, e, ao mesmo tempo, da preservação e respeito à diferença. O calvário da correção, de não incomodar ninguém, sempre foi algo controvertido para o teatro, uma arte que, em muitos casos, costuma mexer no polémico e não sempre se situa nas zonas de conforto.

Thomas Bernhard e a sua obra são um exemplo supremo de controvérsia, incorreção, humor negro, ironia. Em Calvário assistimos ao processo de encenação de Minetti de Thomas Bernhard por uma instituição teatral, motivado pelo suposto centenário do nascimento do escritor austríaco. Na sala de ensaios, no palco, no jogo da meta-teatralidade, a Companhia de Teatro de Almada, coloca numa estrutura micro o reflexo duma estrutura macro: as relações entre diferentes gerações de atores e a maneira de entender a vida; a dificuldade em conciliar criação artística e correção política; as complicações para assumir uma maneira não hierárquica ou horizontal numa organização, neste caso laboral e artística; e, entre as muitas capas desta comedia, ainda a contradição ou o conflito entre o suposto compromisso social e político, virado para a esquerda, e o progressismo do setor das artes cénicas e, pela contra, os constrangimentos para a liberdade criativa, derivados desse compromisso e dos avanços sociais. Por exemplo em matéria de justiça, respeito à igualdade entre homens e mulheres, ao feminismo, ou ao respeito ao coletivo LGTBIQ+, ou às pessoas surdas que também querem usufruir do teatro. Isto pode implicar, portanto, num caso a abolição de atitudes consideradas desrespeitosas ou machistas e, no outro, a inclusão através da tradução em língua gestual, etc.

Porém, o ator protagonista, o Beirão, uma velha glória da cena nacional em decadência, que vai fazer o papel de Minetti, interpretado por Luís Vicente, dá cabo de tudo isso com brincadeiras e atitudes que, noutras épocas eram mais comuns e aplaudidas, mas que agora resultam incorretas e quase até proibidas, porque machistas, homófobicas etc. Porém, a ironia e o humor, num exercício de prestidigitação atoral e também no tom propiciado pelo texto e a encenação, mudam ou produzem uma viragem surpreendente para não ficar numa inconveniente e prejudicial manifestação, mas para levantar questões do ponto da compreensão. O encenador Miguel D’Almeida, interpretado por João Cabral, diverte-nos com essa sua capacidade para fazer concessões e aceitar seja o que for, jogando a duas bandas – o que pede a instituição, o que está na moda, o que deve ser correto, o que querem os atores, etc. – para manter-se no seu papel. O máximo representante da sociedade progressista e integradora parece ser Lucas, o assistente de encenação, interpretado por João Farraia. Nesta mesma tendência estariam a atriz Miranda, interpretada por Teresa Mónica, como mulher experiente nas expressões de solidariedade com os coletivos marginalizados e na libertação feminina; e Vânia, a intérprete gestual, que faz Maria Velez Araújo, num princípio tímida e depois mais empoderada. Mais virado para o lado do Beirão, embora não seja de maneira radical nem contínua, quase a navegar a duas bandas, estaria Cunha o ator, interpretado por Pedro Walter. Também virado para o lado do Beirão está Aselmo, o seu assistente, interpretado por Carlos Pereira, mas neste caso estamos ante uma personagem arquétipo do servilismo.

Tudo, no fundo, ou não assim tão no fundo, é uma contradição e uma aparência. A vontade de estabelecer um processo e de chegar a um espetáculo em que prime uma organização orgânica e horizontal, choca com uma peça em que tudo gira à volta dum protagonista, e o resto dos personagens quase não tem voz. A efeméride do centenário do Bernhard acaba também por não ser mais do que um erro, e as convicções artísticas e sociopolíticas, em muitos casos, tropeçam com a mistura de egoísmo, egolatria e narcisismo, tratados comicamente, dos artistas.

Tudo isto e mais entra nesta comédia, tanto como as citações controvertidas do Bernhard, tiradas da sua autobiografia, assim como trechos doutras peças suas, sobretudo de No alvo. Assim sendo temos uma peça que contem outras peças. Calvário contém Minetti de Thomas Bernhard, da mesma maneira que Minetti contém Rei Lear de Shakespeare, com acréscimos doutros textos de Bernhard e referências também à A Tempestade do bardo inglês. Dois gigantes da dramaturgia universal a entrar num Calvário em que o humor e a ironia desvendam as poses de uma sociedade em que, muitas vezes, correção e respeito só são opiniões para debater, ou palavras num contrato escrito, leis ou teorias no papel, e, sobretudo, uma maneira de fantasiar-se.


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O elenco, composto por Teresa Mónica, Pedro Walter, João Cabral, João Farraia, Carlos Pereira, Luís Vicente e Maria Velez Araújo, estão convincentes e muito críveis nos seus personagens. As suas feições e presenças são muito singulares e oferecem um contraste não só dramático, em termos de carácter e ação, mas também a nível pictórico ou visual, porque, em muitas cenas aquilo parece uma pintura, daquelas de que tanto gostava o Thomas Bernhard. A tudo isto temos de somar a estética decadente, gerada pela cenografia de Céline Demars, a luz de Guilherme Frazão e os figurinos de Ana Paula Rocha.

Sem ocultar o palco, os dispositivos cénicos e essa estética, incluído o velho piano desafinado, do hall do também velho hotel em que transcorre Minetti, são eloquentes no que diz respeito à atualidade. Se calhar até podem sê-lo também nesta confusão que lhe está a abrir as portas, por toda Europa, à ultradireita. Mudamos ou não mudamos?

 

(Agradecimentos a Maria José Albarran Carvalho  pela ajuda na correção linguística deste artigo)

CALVÁRIO de Rodrigo Francisco. Companhia de Teatro de Almada

Texto e encenação: Rodrigo Francisco

Intérpretes: Teresa Mónica, Pedro Walter, João Cabral, João Farraia, Carlos Pereira, Luís Vicente e Maria Velez Araújo

Cenografia: Céline Demars

Figurinos: Ana Paula Rocha

Luz: Guilherme Frazão

40º Festival de Almada. Sala Experimental do Teatro Municipal Joaquim Benite. Almada, 11 de julho de 2023.

Afonso Becerra

Afonso Becerra

Director da erregueté | Revista Galega de Teatro. Pertence ao seu Consello de Redacción desde o 2006. Doutor en Artes Escénicas pola Universitat Autònoma de Barcelona. Titulado Superior en Dirección escénica e dramaturxia polo Institut del Teatre de Barcelona. Titulado en Interpretación polo ITAE de Asturies. Dramaturgo e director de escena. Exerce a docencia en dramaturxia e escrita dramática na ESAD de Galiza desde o ano 2005. É colaborador, entre outras publicacións, de revistas de cultura e artes performativas como 'ARTEZBLAI', 'Primer Acto', 'Danza en escena', 'Tempos Novos', 'Grial'. Entre setembro de 2019 e xuño de 2021 foi colaborador especialista en artes escénicas da CRTVG, no programa 'ZIGZAG' da TVG. Desde setembro de 2022 é colaborador semanal sobre artes escénicas do 'DIARIO CULTURAL' da RADIO GALEGA.
Premio Álvaro Cunqueiro da Xunta de Galicia en 2001. Premio María Casares á Mellor Adaptación teatral en 2016. Premio de Honra do Festival de Teatro Galego, FETEGA, do Carballiño (Ourense) en 2020. Mención Honrosa no Premio Internacional de Xornalismo Carlos Porto 2019 do Festival de Almada (Portugal, 2020).

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